A mulher e o tempo (Estudo do livro Alice no País das Maravilhas) - Estudo 1


 

Quando a história tem início, encontramos Alice preguiçosamente sentada ao lado da irmã que lê um livro para ela. Perto delas corre um pequeno rio, que geralmente é representado na maioria das tradições como símbolo do tempo, da história e até mesmo da duração da vida humana. O curioso é que no decorrer da leitura que fiz do livro da primeira vez, esse foi um fator que me chamou a atenção. A relação da história com o tempo. Ele está presente em várias passagens e sendo mostrado de maneiras diferentes, como a nos lembrar constantemente de que o relógio não para.

Alice é uma menina cuja idade não é especificada no livro, mas se Alice Liddell, menina de dez anos e filha de um amigo do autor, tiver sido realmente o modelo para a Alice do livro, então nossa protagonista é uma garotinha de dez anos ou talvez onze. Nessa idade, o corpo de uma menina começa a sofrer mudanças, assim como o seu olhar com relação ao mundo. Em um determinado momento, Alice diz no livro que gosta de brincar fingindo ser duas pessoas. Seriam essas duas pessoas a Alice criança e a Alice pré-adolescente, cada uma lutando para se impor sobre a outra?

O fato é que, apesar do rio do tempo estar correndo ao seu lado, Alice não parece muito preocupada com ele. Ela está cansada, com preguiça e sonolenta. O livro que sua irmã segura, símbolo de conhecimento e sabedoria em muitas tradições, não lhe desperta interesse. Como uma criança, ela reclama por ele não possuir gravuras e nem diálogos. Mas inconscientemente, algo dentro dela atesta a mudança que está por vir, pois ela ainda conjectura em se levantar e preparar para si uma coroa de margaridas. A coroa é um símbolo de poder e consagração; a margarida é uma flor e como tal representa a beleza feminina em sua realização perfeita, sendo também um símbolo de transitoriedade e mudança. Estaria ela pensando em colocar essa coroa em si mesma e oficializar sua mudança interna de criança para uma jovem mulher? Pode ser, mas o desejo de permanecer na infância parece ser maior e isso a faz sucumbir ao sono.

Diferente de outros mundos descritos em livros e filmes, o País das Maravilhas nos é apresentado como um sonho desde o início. O sonho, segundo a psicanálise, é por si só uma jornada aos pontos obscuros de nosso inconsciente. É exatamente por estar sonhando que Alice não se assusta de início ao ver um coelho branco de colete passando na sua frente. Até então está tudo na normalidade que um sonho poderia ter. Mas é quando ele tira um relógio do bolso que ela desperta. A visão do tempo parece mexer com a menina Alice. Enquanto acordada, o som do rio do tempo apenas a fez ter mais sono e preferir a imobilidade, pois um rio não trazia para ela nenhuma novidade. Foi preciso o surgimento de um elemento fantástico, mesmo este vindo em sonhos, para fazê-la despertar para o tempo que passa com o tic-tac do relógio. E que está passando para ela.

O símbolo do coelho está ligado à menstruação e à fertilidade na maioria das tradições. O fato deste animal possuir um relógio e praticamente esfregá-lo na cara da heroína a fez entender que um primeiro passo teria que ser dado. Mudanças ocorreriam com o passar do tempo, essa era a mensagem. O coelho também possuía outra característica. Ele era branco. O branco representa a pureza espiritual e a inocência, características próprias da Alice-criança, agora decidida e pronta para empreender uma viagem.

Uma jornada simboliza uma busca pelo desenvolvimento pessoal, seja ele material ou espiritual. Viajar significa andar pelo caminho da vida. Um dia Alice iria crescer e ter que empreender tal viagem. Uma viagem que teria que ser sempre para frente, mas que podia ser assustadora em seu início. Simbolicamente, quando um herói ou heroína resolve fazer uma jornada para o desconhecido, ele ou ela sabe que terá que romper um limite entre o mundo conhecido e o que está lá na frente.

Alice segue o coelho até uma toca e sem nem pensar, atira-se dentro dela. Com isso, ela sofre uma queda vertical no que parece ser um poço sem fim, cujo simbolismo está ligado ao inconsciente. Durante o tempo da queda, Alice consegue refletir sobre a vida e enxergar reflexos dela em forma de objetos que vão surgindo nas paredes do poço. Entre esses objetos estão armários de cozinha, estantes de livros, quadros e mapas. Curiosamente, ela agarra um pote de geleia de laranja e se frustra ao ver que está vazio. A laranja é mais um símbolo associado à fertilidade e sugere tanto a virgindade quanto à fecundidade.

Quando Alice finalmente chega ao final do poço, ela consegue ver um caminho e nele o coelho branco correndo apressado. Ela levanta-se e o segue, pois ela não quer deixar o tempo escapar. Ela acaba chegando a um local curioso. Um salão cheio de portas. Esse quadro me lembrou muito o livro O Sobrinho do Mago, de C.S.Lewis, quando os garotos encontram uma clareira com vários lagos, cada lago uma passagem para um mundo diferente. No salão de Alice, cada porta é uma passagem, mas estão todas trancadas para ela. Apenas uma, a menor, que estava encoberta com uma cortina, é a que lhe pertence.

Nesse ponto do capítulo vai acontecer uma coisa muito curiosa simbolicamente. A presença de símbolos alquímicos. Alice encontra no meio do salão uma mesa toda feita de vidro. Essa mesa age como um guardião daquela porta. Existe uma chave, mas não é tão fácil pegá-la. O vidro é um símbolo da alquimia, importante por ser o material do recipiente que servia para fazer as misturas que iam ser testadas pelos alquimistas. Alice precisa da chave que ela lhe oferece, símbolo de autoridade espiritual que lhe dará acesso à riqueza sagrada ou ao caminho da descoberta. Mas para conseguir pegar a chave e passar pela pequena porta, Alice tem que sofrer uma transformação. A mesa então, como um bom guardião do portal, lhe oferta uma garrafa onde está escrito: beba-me!, e um bolo, onde está escrito: coma-me! Como os enigmas de uma esfinge. Cabe a Alice saber como digerir aquilo em doses harmônicas para que possa ser considerada digna de pegar a chave e passar pela porta, alcançando assim o belo jardim que se encontra do outro lado, símbolo do princípio feminino.

Vou deixar aqui a indicação da edição de Alice no País das Maravilhas comentada, da editora Zahar. Na minha opinião, uma obra prima que engloba também o livro Alice no País dos Espelhos, com vários comentários, ilustrações originais e um acabamento primoroso.

 


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