A difícil arte de crescer (Estudo do livro Alice no País das Maravilhas) - Estudo 2


 

O capítulo dois do livro tem como título Uma lagoa de lágrimas. E isso não poderia ser mais apropriado. Continuando com a análise simbólica iniciada com o estudo do capítulo um, veremos que a partir daqui, o mergulho que Alice começa a dar para dentro de si é extremamente profundo e, muitas vezes, angustiante.

 No final do primeiro capítulo, Alice come um bolinho inteiro que encontra embaixo da mesa na intenção de crescer o suficiente para se apropriar da chave que abrirá a porta para o convidativo jardim. Entretanto, ela ainda não está acostumada com as leis daquele mundo, e sua gula apenas a faz crescer mais do que o normal. É este crescimento anormal que abre o segundo capítulo. O lidar com o tamanho, até aqui, tem sido um problema para Alice. O ato de crescer e diminuir, as mudanças no corpo, levam Alice a parar e meditar no assunto, questionando a si mesma em meio a toda confusão que está sentindo, iniciando um diálogo interno enquanto está imersa em seu inconsciente. Pensar sobre a própria identidade a deixa confusa e triste e, por causa do seu tamanho, suas lágrimas começarão a formar uma lagoa.

 Nesse momento, Alice se encontra em um lugar intermediário que já foi citado antes, um grande salão rodeado de portas trancadas, com apenas uma porta minúscula a esperar por ela, bastando para abri-la que ela consiga a chave. Este lugar está localizado no mundo subterrâneo, no fundo da toca do coelho. E Alice se encontra presa ali, impossibilitada de voltar ou seguir em frente. Essa impossibilidade vai gerar na protagonista uma angústia interior muito profunda, como veremos a seguir.

 Para começar, o crescimento de Alice após comer o bolo se dá de forma rápida e extrema. Ela própria assusta-se com a mudança inesperada refletida em seu próprio corpo “mal ajustado”. Ela se vê e pensa: “Agora estou espichando como o maior telescópio que já existiu!”, isso remete ao fato do adolescente sentir o corpo meio desengonçado na fase da puberdade. Alice sentirá essa mudança um pouco mais para a frente também ao tentar recitar um poema: “Vou tentar recitar ‘Como pode…’”, e de mãos cruzadas no colo, como se estivesse dando lição, começou a recitar, mas sua voz soava rouca e estranha e as palavras não vieram como costumavam”. O que ocorre, a princípio, é um fenômeno biológico com consequências psicológicas que podem acompanhar a pessoa até a idade adulta, segundo Papalia e Olds (2014, pg 312), “Essas mudanças físicas dramáticas são parte de um longo processo complexo de maturação que inicia antes mesmo do nascimento, e suas ramificações psicológicas continuam até a idade adulta”.

 Esse crescimento “desengonçado” faz Alice perceber que pode alcançar a chave para abrir a portinha do jardim, mas, ao abri-la, o próprio tamanho a impede de passar. Isso acaba causando uma profunda angústia e tristeza na menina: “Pobre Alice! O máximo que conseguiu, deitada de lado, foi olhar para o jardim com um olho só; chegar lá estava mais impossível que nunca: sentou-se e começou a chorar de novo”.

O que chama a atenção nesse episódio é o estado emocional que acompanha a personagem. Sua confusão ao pensar em si própria, a falta de aceitação com as mudanças, são fatores que vão gerando nela uma angústia crescente:

 

“Devia ter vergonha”, disse Alice, “uma menina grande como você” (podia bem dizer isso), “chorando dessa maneira! Pare já, já, estou mandando!” Mesmo assim continuou, derramando galões de lágrimas, até que à sua volta se formou uma grande lagoa, com cerca de meio palmo de profundidade e se estendendo até a metade do salão.

 

Pode-se perceber que há uma luta interna acontecendo. Alice se sente confusa o suficiente para chorar copiosamente, mas briga consigo mesma por ser “uma menina grande”. Há um conflito muito claro relacionado com essa mudança. A lagoa de lágrimas formada durante o choro nos remete ao elemento líquido, à água, símbolo psicológico ligado ao inconsciente, à alma, aos sentimentos e ao fluxo da vida. (O’Connel e Airey, 2010). Isso, somado ao fato da lagoa ser formada de lágrimas, atesta o nível emocional da protagonista. Nesse momento, surge novamente o Coelho Branco, símbolo do tempo em nossa análise. Alice se recompõe com a sua proximidade e tenta pedir-lhe ajuda, mas o coelho foge diante do seu tamanho, deixando para trás um leque e um par de luvas, acessórios que na época vitoriana eram próprios de pessoas adultas. Alice segura os itens nas mãos e daí começa a filosofar:

 

“Ai, ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam exatamente como de costume. Será que fui trocada durante a noite? Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me levantei esta manhã? Tenho uma ligeira lembrança de que me senti um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta é: ‘Afinal de contas quem sou eu?’ Ah, este é o grande enigma!”

 

Ela começa a se questionar se não havia sido trocada por outra criança, pois estava difícil, além de reconhecer ela mesma dentro de todo aquele turbilhão de emoções, aceitar a mudança que ocorria no seu interior, que a fazia ter que abandonar a infância e se aventurar em um caminho novo.

 

“Afinal de contas, devo ser Mabel, e vou ter de ir morar naquela casinha apertada, e não ter quase nenhum brinquedo com que brincar, e oh! muitíssimas lições para aprender! Não, minha decisão está tomada; se sou Mabel, vou ficar aqui! Não vai adiantar nada eles encostarem suas cabeças no chão e pedirem ‘Volte para cá, querida!’ Vou simplesmente olhar para cima e dizer ‘Então quem sou eu? Primeiro me digam; aí, se eu gostar de ser essa pessoa, eu subo; se não, fico aqui embaixo até ser alguma outra pessoa’… Mas, ai, ai!” exclamou Alice numa súbita explosão de lágrimas, “queria muito que encostassem a cabeça no chão! Estou tão cansada de ficar assim sozinha aqui!”

 

 

Nesse ponto, a angústia, desespero, tristeza e solidão da personagem nos fazem reviver nossa própria história de conflitos emocionais. Alice não é mais uma garotinha meio pedante e metida a esperta que seguiu corajosamente um coelho branco para dentro de uma toca. Ela agora se torna uma pessoa real, com conflitos reais pelos quais passa qualquer mulher nessa fase de suas vidas. Após esse desabafo, Alice percebe que, por segurar o leque nas mãos, ela começa a diminuir e, sem perder tempo, corre para a portinha do jardim, novamente a encontrando trancada. Quando começa a se lamentar, agora por se sentir pequena demais, ela pisa em falso e cai na lagoa formada por suas lágrimas, imersa em sentimentos, mas deixando-se levar pelo seu fluxo.

 

“Gostaria de não ter chorado tanto!” disse Alice, enquanto nadava de um lado para outro, tentando encontrar uma saída. “Parece que vou ser castigada por isso agora, afogando-me nas minhas próprias lágrimas! Vai ser uma coisa esquisita, lá isso vai! Mas está tudo esquisito hoje.”

 

O interessante a partir daqui é perceber que a passagem para o início da jornada não é feita pela portinha do jardim, como a lógica parecia apontar (afinal tínhamos uma chave e uma porta), mas pelo mergulho dentro da lagoa de lágrimas, o que poderia representar um mergulho dentro de si mesma, numa tentativa de entender aquele mundo louco e confuso que se abria para ela.

 A história de Alice traz muitas características da Jornada do Herói, então como indicação vou deixar aqui embaixo o livro que deu origem a toda essa visão: O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell.

 


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