O leque e as luvas (Estudo do livro Alice no País das Maravilhas) - Estudo 4


 

A primeira coisa que percebemos no início do capítulo 4 (você pode encontrar os estudos anteriores nesse mesmo blog), que se intitula, de forma curiosa “Bill paga o pato”, é que Alice se encontra em um cenário diferente após ter mergulhado na Lagoa de Lágrimas. O cenário a sua volta mudou sem que ela tivesse que passar por qualquer porta. Na verdade, tudo havia sumido: o grande salão, a mesa de vidro com a chave e a portinha. Alice nem sequer precisou pegar a chave!  Na verdade, o nado na lagoa parece ter servido de passagem.


Tudo parecia ter mudado desde o seu nado na lagoa, e o grande salão, com a mesa de vidro e a portinha, desaparecera por completo.


Mas convém lembrar que ao mergulhar na Lagoa de Lágrimas, Alice estava dominada por intensas emoções que geraram nela uma angústia profunda ao ponto de não se reconhecer mais. Em momentos de crise emocional, os sentimentos afloram.  Parece impossível conseguir aliviar emoções como a raiva, tristeza e angústia que tomam conta rapidamente de nosso corpo e de nossa mente. As chances de agir apenas por nossos impulsos são altas.




Quando estamos em crise emocional, segundo a psicóloga Van Martins em seu texto “Aliviar Emoções Intensas: Reflexo de Mergulho”, o sistema nervoso simpático é ativado. Esse sistema é responsável por nos colocar em modo de luta e fuga e com isso há aceleração dos batimentos cardíacos, aumento da temperatura corporal e os sintomas que costumamos chamar de ansiedade. O sistema nervoso parassimpático faz justamente o contrário, coloca nosso corpo em estado de “repouso” diminuindo a excitação emocional. Assim, o reflexo de mergulho tem como objetivo ativar o sistema nervoso parassimpático de maneira rápida e dessa forma aliviar as emoções intensas.

Segundo Junior Minin, em seu texto “Sobre abrir a porta para a interioridade”, ele destaca que:

Às vezes, certos acontecimentos da vida, como acidentes, mortes, doenças e separações, devido à forte carga emocional e psíquica que carregam, forçam a pessoa a realizar um “mergulho” mais profundo em seu mundo interior, a fim de encontrar e desenvolver recursos para lidar eficazmente com essas experiências. É como se a “porta” que dá acesso às dimensões mais profundas da psique estivesse sendo aberta à força por violentas e dolorosas emoções, ou seja, mesmo que a pessoa não queira mergulhar um pouco mais nas profundezas de si mesma ela se vê quase obrigada a realizar tal tarefa, talvez pela primeira vez na vida.

O que eu entendo ao ler esse texto, aplicando-o a esse momento da história de Alice, é a de que uma porta foi aberta sim, forçada por sua carga emocional intensa, e essa porta a fez entrar em uma camada ainda mais profunda de seu inconsciente, pronta para começar a ser explorada. Essa história de “portas” e “mergulhos” lembrou-me de As Crônicas de Nárnia, onde no primeiro livro “O Sobrinho do Mago”, os protagonistas encontram um “bosque entre mundos” que era cheio de lagos e cada lago era uma porta para um mundo diferente, bastava mergulhar usando os anéis certos para alcançá-los.




Mas, voltando ao capítulo, sabemos que houve a passagem e o encontro com as vozes de seu inconsciente, personalizadas como uma pequena multidão de animais, na maioria aves, articulando uma corrida maluca para secar as roupas. Depois de tudo isso, os animais se dispersam e as “vozes” se vão, deixando Alice novamente imersa em sua solidão e prestes a cair novamente em um estado de tristeza. É aí que ela escuta os passos do Coelho Branco que se aproxima. Mas o que significa mesmo o Coelho Branco? Como um símbolo lunar, o coelho está associado à menstruação, mas no caso de Alice também significa o “gatilho” que a desperta e lhe dá forças para continuar a jornada. Foi ele que a induziu a pular pela toca e agora é ele que vai fazer com que ela entre no mundo que acabou de alcançar.

Dessa vez, a curiosidade de Alice não é despertada pelo relógio do Coelho (símbolo do tempo), mas por algo que ele procura. No caso, os dois objetos que ele havia anteriormente deixado para trás: o leque e o par de luvas. Estes pareciam pertencer a uma tal Duquesa, a qual o Coelho parecia temer. O título evoca alguém importante da nobreza e que poderia ter certa autoridade naquele mundo esquisito. Mas o que poderia representar esses objetos para a menina Alice?




Vamos partir do fato de que Alice é uma garotinha vivendo na sociedade inglesa da Era Vitoriana. Um dos ritos de passagem para a vida adulta, para uma menina, era ser apresentada à sociedade, isso era feito geralmente em bailes. Desde cedo as pequenas damas vivem de acordo com normas rígidas de educação. Aprendem a ler, escrever e fazer contas. Têm também aulas de piano e desenho, aprendem a dançar, trabalhar bem com a agulha, e estudam línguas estrangeiras como francês e italiano. Tudo isso para que pudessem brilhar nos bailes atraindo a atenção de aspirantes a marido. A sociedade era governada por regras e preceitos morais, existiam manuais sobre como se comportar corretamente, como se vestir e o que dizer. Manuais sobre etiqueta e dança existia em grande número.

No salão de festas, que era sempre ricamente decorado e iluminado, os homens deveriam estar vestidos elegantemente, é claro, mas as mulheres sempre iam especialmente resplandecentes, e seus belos vestidos reforçariam a rica ornamentação.

“Para as senhoras, um vestido de cor clara, com um decote revelando os ombros e braços, e luvas longas. Elas devem levar em uma das mãos um leque feito de marfim ou madrepérola e na outra o seu cartão de dança”. 

O leque era um elemento indispensável da elegância das mulheres, que também lhes permitia expressar-se sem palavras, por exemplo: Dependendo se o leque estava fechado, aberto ou “vibrando”, poderia transmitir uma recusa, interesse ou entusiasmo. Podemos ver com isso, que tanto o leque quanto o par de luvas faziam parte do vestuário feminino adulto em seu ambiente social de rito de passagem. Talvez naquele momento Alice sentisse que eles poderiam vir a lhe pertencer, de lhe serem adequados.

Naquele momento, Alice parecia agir e se comportar como uma adulta, pois o Coelho, ao perceber sua presença, a confunde com a criada e a chama de Maryanne. Esse era um nome comum a muitas mulheres da época, o que fez com que fosse associado às criadas de uma forma genérica. Mas Maryanne também era um símbolo francês de conotação política que personificava a República como uma mulher. Perceba que os símbolos aqui falam de mulheres e não de crianças.




Alice, obedientemente, atende a ordem do Coelho que a manda entrar na casa dele para pegar um leque e um par de luvas. Agora nós vamos ver a primeira casa que Alice encontra em seu sonho. A casa do Coelho Branco. A casa é um elemento recorrente nos sonhos, sendo um símbolo da personalidade consciente com a qual atuamos no mundo exterior e também dos aspectos mais íntimos da nossa mente inconsciente. A psicanálise, principalmente a junguiana, visualiza a casa como símbolo do ser interior de uma pessoa, portanto, quando alguém descreve ou desenha uma casa vista em um sonho, está descrevendo sua estrutura psíquica. O exterior da casa pode ser visto como a representação de nossa personalidade externa, com janelas e portas mostrando nosso relacionamento com outras pessoas e com o mundo. Ela representa a própria personalidade do sonhador em seus aspectos conhecidos e desconhecidos. Suas diferentes partes têm significados distintos para quem sonha. A parte externa da casa pode representar como as pessoas nos enxergam.




A casa do Coelho, por fora, parecia à Alice “pequenina” e “jeitosa”, com uma placa de bronze identificando o dono da casa. Apesar de o nome ser o do Coelho Branco, o sonho é de Alice, sendo o coelho parte de sua personalidade, então vamos olhar para a casa relacionando-a com Alice e como ela se mostrava naquele momento. Assim como a casa, Alice se mostrava uma garotinha pequenina e jeitosa que podia ser identificada pelo nome. “Eu sou assim! Eu sou Alice! É assim que o mundo me vê”.

Ao entrar na casa, Alice sobe a escada, direto para o quarto, que se encontra arrumado e em ordem. Sobre uma mesa ela encontra o leque e alguns pares de luva, símbolos de uma inevitável vida adulta. O quarto da casa representa a privacidade, a intimidade, ou seja, aquilo que nem todo mundo conhece. Na mente de Alice, essa área de sua personalidade parece em ordem, se não fosse por um detalhe. Ela vê uma garrafinha de vidro perto do espelho. A garrafa dessa vez não tem rótulos, mas Alice não espera duas vezes para abri-la e beber o conteúdo. Curiosa, ela sabia que algo iria acontecer. E aconteceu! Ela cresceu mais do que devia. De repente, a casinha perfeita já não lhe cabia. A vida de Alice até ali parecia bem arrumada e intocável, mas ela havia crescido demais para caber naquela casinha perfeita. A garrafa estava ali para lhe lembrar disso. Não era confortável ficar naquela posição. Era apertado, era sufocante.




Alice cresceu o suficiente para manter todas as vozes do seu inconsciente do lado de fora, tentando forçar sua entrada de várias maneiras. Isso pode ser representado pelo Coelho e pelos animais que ele chama para ajudá-lo a tirar o “monstro” de dentro da casa. O “Bill” do título é uma dessas vozes. Ele tenta entrar pela chaminé e algumas pedrinhas caem dentro da casa, se transformando em bolinhos. Alice pega um deles e come, sabendo agora que uma mudança acontecerá em seu corpo. Ela começa a entender a dinâmica do crescimento, embora ainda não consiga controlá-lo. Com isso, ela diminui o suficiente para sair da casa sem ser percebida e corre para o bosque.




De repente, o bosque parece oferecer uma saída, um abrigo em meio a toda essa confusão, mas antes de alcançá-lo, surge um cachorro barrando o seu caminho. Apesar de ser um filhote, devido ao fato de Alice estar muito pequena, o tamanho dele se torna assustador. Aqui é bom lembrar a simbologia do cão como guardião e guia do submundo. Simbolicamente, os cachorros têm uma estranha relação com o outro mundo, o mundo dos mortos, dos espíritos, aquele de onde vêm os sonhos, aquilo que chamamos de inconsciente. Essa relação advém de sua natureza instintiva. Por exemplo, em praticamente todas as religiões do mundo o cachorro é o guia que leva os mortos para o outro mundo. Alice está prestes a entrar em uma nova fase de seu sonho. O que estará esperando por ela dentro daquele bosque?

 


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